Casa da Senhora Marquinhas por Aniceto Carvalho

Casa da Senhora Marquinhas

Seguem-se algumas memórias desta casa e dos seus proprietários deixadas por Aniceto Carvalho, e que correspondem ao período em que habitou em Couchel, entre 1935 e 1947:[1]

A senhora Marquinhas, uma antiga e bem sucedida criada de servir em Lisboa, vivia o declinar da vida em Couchel, estável, sem misérias nem aflições, tinha uma bonita casa quase em frente da dos meus avós. Eram da mesma idade e compadres. A senhora Marquinhas conservava os traços de uma mulher interessante, o meu avô, sabe-se desde quando, tinha um fraquinho por ela.

Tudo quanto de mais distante eu guardava na memória eram os últimos dias da construção da casa da senhora Marquinhas. Vagamente, muito vagamente… uma sequência de imagens difusas. Era daí que mais longe eu recordava a senhora Marquinhas, de um dos primeiros anos em casa dos meus avós, em Couchel, para onde a minha madrinha, a tia Dora, me tinha levado, mal eu tinha acabado de abrir os olhos. Não que eu fosse algum prodígio… mas porque, simplesmente, no despertar para a vida poucas coisas escapam aos olhos de uma criança de dois ou três anos no meio de uma azáfama de gente que se movimenta e de cores que se sobrepõem e confundem.

A meia dezena de anos dos sessenta, ainda a tempo de aproveitar uma velhice tranquila, a senhora Marquinhas acabava de regressar à terra. Vizinha muito chegada, ainda madrinha de um dos seus tios, quando eu soube quem era, a senhora Marquinhas era praticamente da família.

Quatro dezenas de anos antes, contudo, uma outra senhora Marquinhas que acabava de ultrapassar o principio da adolescência a meados da última década do Século XIX, chega a Lisboa… traz na bagagem uma boa dose de saber inato, nem lhe passa pela cabeça abrir mão do bom senso com que a mãe natureza a presenteara. A Maria José que aos setenta anos recebia o Diário de Notícias todos os dias numa terra entre o Mondego e o Ceira a vinte e tal quilómetros de Coimbra, sabia meio século antes que jamais iria deixar que os limites de criada de servir de modo algum fossem o seu destino.

Rapariga engraçada, sobretudo atilada, a futura senhora Marquinhas sabe o que quer e para onde vai… Sempre um passo à frente das obrigações, tem os patrões na mão e mundo aos pés. Todos os minutos livres são para se cultivar, o arado e a aiveca que lhe vão rasgar os horizontes.

Sabe que as mais pindéricas são as piores patroas, informa-se com todo o rigor, as primeiras casas dão-lhe o que esperava, o salto é inevitável. Mal passados os vinte anos é governanta numa casa de alto gabarito, dona e senhora, alcança o que todas levam um vida inteira para lá chegar.

Cabeça firme, a jovem Marquinhas percebe muito bem que se as raparigas como ela são uma raridade, decide também e firmemente que nunca será só do futuro marido o privilégio de a escolher para a levar ao altar.

É então que a sorte compensa os que lutam por ela: A ainda jovem dona da casa deixa viúvo um funcionário perto dos quarenta anos bem de vida, de repente toda a competência e capacidade da jovem Maria José vem ao de cima, é por um pouco que o senhor doutor nem dá pela morte da mulher.

Os meses passam. A jovem governanta sabe o que quer, para onde vai, não arrisca passos em falso, o senhor doutor tem uma vida ocupada e de grandes responsabilidades, considera que com o que tem à frente dos olhos não tem tempo para experiências, o desfecho é inevitável.

Cria um filho, depois de uma serena vida de dona de casa sem percalços, fica também viúva; quando o filho segue também o seu caminho, a senhora Marquinhas resolve que nada mais está a fazer em Lisboa: Junta ao pecúlio amealhado a herança do marido falecido, a dias da Guerra Civil Espanhola volta a Couchel, ao promontório das margens da Ribeira de Vila Chã.

Casa da Senhora Marquinhas, 1947
Casa da Senhora Marquinhas, possivelmente em 1947.

Além da alteração à rotina, e porque a casa da Senhora Marquinhas era a seguir à do meu avó, quase ao lado, porque era também, e foi durante largos anos a mais bonita do lugar, nada melhor que obras ali ao pé para trazer os olhos de um miúdo de três anos esbugalhados até à nuca.

E foi assim que eu conheci a Senhora Marquinhas: Uma mulher rechonchuda, com claros traços de uma antiga beleza discreta, sem rugas de amargura, com a vida planeada para uma velhice tranquila, sem sobressaltos, ainda antes dos sessenta anos, a viver com a irmã, a senhora Delfina, a fazer da antiga casa da familiar uma das mais bonitas habitações de toda aquela zona.

Na verdade, de alguém que andava por ali, que eu nem sequer distinguia do meu avô, da minha avó ou dos meus tios, meses depois das obras, o terraço da Senhora Marquinhas era um local confortável, tudo em volta era interessante, eu gostava de andar por ali nos primeiros giros exploratórios.

Tenho cerca de três anos, a casa do meu avô é logo em baixo, a uns metros, só estou na rua sozinho porque alguém está por perto: A senhora Marquinhas e a irmã, a senhora Delfina, estão debruçadas no corrimão da escada para o terraço, de esguelha para a rua, a conversar com o António Vaz (o Ti Zanaga), de passagem por Couchel, ninguém repara (nem era caso para isso), que eu acabava de subir a ladeira, que estou a brincar com o Mondego, o cão da Avessada, um Serra da Estrela com quase um metro de altura, ali a dois passos às voltas com um osso que acabava de encontrar.

Dois segundos, não mais. No seguinte até o poderoso Serra da Estrela ficou em pânico ao se aperceber que o braço que ele acabava de abocanhar era o do miúdo que ele conhecia muito bem.

As duas irmãs saltam os três degraus da escada, transpõem a cancela, com uma agilidade que lhe contraria as idades, seguram-me nos braços. Dois caninos marcados ao de leve, à flor da pele. Nada mais. O próprio Mondego, assustado, tinha suspendido a dentada antes de a concluir.

Fico a conhecer a Senhora Marquinhas para toda a vida.

Tempo depois foi a vez do meu avô explicar: “Nunca passes por trás dos bois, burros, cavalos, animais desses, muito menos no escuro… podem confundir-te, não sabem o que é, e é muito perigoso”. Percebi, guardei a lição para todo o sempre…

Aniceto Ferreira de Carvalho nasceu em Março de 1935, na localidade de Vale de Vaz. Cresceu em Couchel e, terminada a 4ª classe, foi trabalhar para Rio de Mouro (Sintra). Aos 17 anos ingressou na Força Aérea Portuguesa como mecânico de avião e mais tarde como especialista mecânico de material aéreo. Veterano da Guerra do Ultramar, faleceu no mês de Março de 2020.

Fica a nota aos leitores que o mesmo deixou nos seus escritos:

Que fique bem claro: Nenhum dos epítetos locais ou situações vividas tem a menor intenção de menosprezar seja quem for.