Quinta do António Henriques por Aniceto Carvalho
Seguem-se algumas memórias desta casa e dos seus proprietários deixadas por Aniceto Carvalho, e que correspondem ao período em que habitou em Couchel, entre 1935 e 1947:[1]
Para além do maior ou menor quintal caseiro que toda a gente tinha, eram nas traseiras do lugar até aos Marmeleiros, a Quinta do Senhor Abel, ao lado desta o sempre impecavelmente cultivado quintal do Ti António Henriques. Tudo do Ti António Henriques era maior e melhor. Os porcos, as galinhas, o milho da ribeira, os figos da figueira em frente do quintal do meu avô.
Desta vez o Ti António Henrique tinha semeado o quintal de nabos.
Depois de cerca de quarenta anos de pitrolino em Queluz, nos velhos tempos em que a actividade dava dinheiro e prosperidade, o Ti António Henriques tinha voltado à terra. Por infelicidade: Embora a rondar os sessenta anos, o Ti António Henriques não tinha regressado à terra para usufruir dos anos da velhice… homem ainda robusto, não fosse a doença da mulher, e o antigo comerciante não teria deixado tão cedo a Linha de Sintra.
O Ti António Henriques pertencia àquela rara classe de homens que cai sempre de pé… achava que os seus problemas e dificuldades só a ele pertenciam, e que, se os tinha, — e com a mulher acamada há anos tinha-os de certeza — não valia a pena lamentar-se pelas esquinas que ninguém lhos resolvia.
E por isso o Ti António Henriques era o maior lá na terra: Eram dele os porcos mais gordos, o milho mais alto, as maiores cabeças de nabo… para quem não soubesse que tudo aquilo era fachada num coração do tamanho do mundo, a primeira impressão do velho pitrolino era um desastre.
Toda a gente conhecia o Ti António Henriques… não havia nada a fazer.
Mais ou menos com a idade do meu avô, o Ti António Henriques teria os seus vinte anos no final do Século XIX. Ainda rapazote, porém homem feito de iniciativa, o Ti António Henriques descobrira que as serras de São Pedro Dias e do Carvalho lhe limitavam as vistas: Informou-se, passou uns dias na linha de Sintra, juntou uns patacos aos do António Lucas de Vale de Vaz, deixaram a terra, partiram a montar uma venda de azeite em Queluz…
Com uma força de vontade, capacidade de trabalho e esperteza que nem eles próprios sabiam ter, do Palácio Nacional à Venda Seca, de Massamá a Carenque, em poucos meses era tudo deles.
Com a experiência de Queluz em pleno andamento, a Amadora, mesmo ali ao lado, estava escancarada. Separaram-se de mutuo acordo pelo mesmo objectivo antes por eles traçado, com o António Lucas na nova venda de azeite na terra vizinha, assim nasceram dois dos melhores estabelecimentos do ramo nos arredores de Lisboa da primeira metade do Século XX.
O António Henriques ficou em Queluz. Homem de boa aparência, sanguíneo, de voz timbrada, o trato e a educação esmerada faziam parte da actividade, a quatro ou cinco anos do fim da monarquia o então jovem António Henriques prosperava. Considerado até por gente de outras galáxias, não admirava que o pitrolino fosse sensível à imagem que ele tinha criado de homem sério e batalhador, que ele se esforçava por alimentar e lhe fazia crescer o ego.
[…] eu era muito jovem, com dezassete anos, tinha passado os últimos cinco na mesma venda que há quase duas décadas atrás era do velho pitrolino lá da terra, apesar de saber que o Ti António Henriques escorria jactância pelos poros, não me fazia grande confusão que a própria Rainha Dona Amélia viesse à porta assistir às compras para o Palácio e falasse com ele. E as coisas ficaram assim.
Mais uns anos, a minha mulher achou que o Ti António Henriques era um velho petulante, que aquilo não tinha cabimento; eu estava nos vinte e seis anos, Queluz tinha passado na minha vida, tinha uma guerra pela frente, também me pareceu um bocado de exagero do antigo pitrolino. Mas, se calhar não era — penso eu hoje, talvez com mais objectividade. Suficientemente afastado, porém a dois passos da Lisboa, Queluz tinha ares de se confundir com um dormitório elegante da capital. Por lá habitava um Stuart Carvalhais, uma Mimi Gaspar e um Tomé de Barros Queirós no seu auge, gente ao mais alto nível na época, da política, da arte, do jornalismo, etc., que nem me passava pela cabeça quem eram nem quem pudessem ser.
Estamos em 1950, Queluz tem carreiras normais de autocarro do Eduardo Jorge a todas as horas nos Quatro Caminhos, no centro da povoação, na rua Elias Garcia, para Lisboa, da Estação dos Caminhos de Ferro para Belas, comboios uns atrás dos outros na linha de Sintra.
Eu moro a metros dos Quatro Caminhos. Durante quase cinco anos corro Queluz de uma ponta à outra, conheço de vista toda a gente, sei quem mora em todas as portas. Falo com a mulher do Stuart Carvalhais, com a mãe da Mimi Gaspar; o pai dos Condes, do Alfredo e do Manuel, cavaleiros Tauromáquicos da época, um ganadeiro da zona de Caneças, era um dos assíduos frequentadores das patuscadas no armazém do meu patrão, em geral cabrito assado no forno a lenha com batatas coradas.
Estavam lá todos, sete ou oito, gente da tauromaquia, das artes, etc., de samarra e chapéu à marialva no dia da colhida do Manuel dos Santos em 1948 quando chegou a ser anunciada a sua morte. Sou um simples empregado de 14, 15 ou 16 anos. Para além da cortesia e educação que a actividade de pitrolino exige, lido durante anos com gente do mais elevado nível sem o saber ou não ligar a isso a menor importância. Estou a falar de quase cinco anos de vida vivida em cheio em Queluz.
Quarenta e cinco anos antes, numa altura em que a monarquia portuguesa está no fim, quando toda a simpatia das elites afins é pouca, pelo que depois presenciei e vivi na pele na amistosa terra da Linha de Sintra, não me repugna rigorosamente nada imaginar a Rainha Dona Amélia a tagarelar com o simpático e educado pitrolino à porta de serviço do Palácio de Queluz.
Aproximadamente a meio do lugar, logo a seguir à modesta mas asseada casa dos Gandarinhos era a do Ti António Henriques. A casa do Ti António Henriques, uma verdadeira casa de lavrador, mais ao estilo ribatejano que beirão, era quase o ex-libris de Couchel: A adega encostada a casa dos Gandarinhos, uma casa bem delineada de águas furtadas a seguir, um amplo pátio servido por um largo portão, no lado oposto à habitação, currais, pocilgas, etc.
Um quintalão enorme nas traseiras, quase até aos Marmeleiros, e mais umas leiras, uma delas à Ponte, no início da ladeira para Couchel, faziam dos haveres do Ti António Henriques um património bem interessante. Herdado, por certo. Além da idade que as paredes deixavam adivinhar, também não era de supor que o Ti António Henriques tivesse ganho assim tanto dinheiro a vender azeite em Queluz, nem que, sem filhos, tivesse comprado uma propriedade daquelas para se entreter na velhice.
Embora ainda com bastante vigor, mas sem herdeiros directos, com a mulher acamada ainda antes dos sessenta anos, os últimos anos do Ti António Henriques tinham tudo para ser um drama. Não foram. O enorme ego e o indestrutível ânimo mantiveram o antigo azeiteiro de pé até ao último dia. […]
Pouco depois do Ti António Henriques ter voltado à terra devido à doença da mulher, foi a vez do cunhado dele de Vale de Vaz, o António Lucas, adoecer e deixar para trás a venda da Amadora. Morreu pouco depois. E assim os dois irmãos do meu avô, o António Lucas e a irmã, a mulher do Ti António Henriques, morreram os dois quase na mesma altura.
Aniceto Ferreira de Carvalho nasceu em Março de 1935, na localidade de Vale de Vaz. Cresceu em Couchel e, terminada a 4ª classe, foi trabalhar para Rio de Mouro (Sintra). Aos 17 anos ingressou na Força Aérea Portuguesa como mecânico de avião e mais tarde como especialista mecânico de material aéreo. Veterano da Guerra do Ultramar, faleceu no mês de Março de 2020.
Fica a nota aos leitores que o mesmo deixou nos seus escritos:
Que fique bem claro: Nenhum dos epítetos locais ou situações vividas tem a menor intenção de menosprezar seja quem for.