Sobre a Ribeira de Vila Chã por Aniceto Carvalho

Escreve Aniceto Carvalho:[1]

Vistas dali do alto da Eira, algumas terras no vale da Ribeira de Vila Chã era como não querer ver com a mão à frente dos olhos de dedos abertos: Por mais que tentasse afastar o olhar, o que mais me fazia voltar aos dez anos era o choro do engenho do Joaquim Martins ao lado do Chão da Vinha.[2]

Era uma festa. De terras normalmente alagadas nos Invernos, portanto, em geral, razoavelmente produtivas, toda a várzea da Ribeira de Vila Chã era, no Verão, uma cantilena de engrenagens de engenhos a chiar, de burros a gemer, (na minha terra chamava-se burro à picota ou cegonha), de gente aqui e ali a regar, a sachar, a desfolha, por fim a apanha do milho, o ritual da descamisada, os cantares ao desafio e o milho rei.

Não se confunda, no entanto: sem o mínimo das condições dos nossos tempos, embora já nem se saiba se para bem ou para mal, este quotidiano tranquilo, o mais certo por defesa natural, nada tinha a ver com os devaneios líricos do Virgílio, como estes nada tinham a ver na altura com os pobres camponeses e pastores da Arcádia. Era assim… e, parece, dormia-se muito bem.

Dali de cima via-se tudo, dos Moinhos às Paúlas: o Zé Cristo nos Atoleiros, o meu avô na Ribeira, o Joaquim Martins no engenho… lá de cima, da Eira, porque nesta altura da rega, cá em baixo, no vale, ninguém se via uns aos outros no meio do milho a meia dúzia de metros.

Eu era “cá de baixo”. Tinha nascido ali mesmo na Tapada de Vale de Vaz.

Aniceto Ferreira de Carvalho nasceu em Março de 1935, na localidade de Vale de Vaz. Cresceu em Couchel e, terminada a 4ª classe, foi trabalhar para Rio de Mouro (Sintra). Aos 17 anos ingressou na Força Aérea Portuguesa como mecânico de avião e mais tarde como especialista mecânico de material aéreo. Veterano da Guerra do Ultramar, faleceu no mês de Março de 2020.


  1. “Regresso a Couchel” de Aniceto Carvalho ↩︎
  2. Nome dado aos terrenos em Vale de Vaz que ficam do lado oposto da ribeira aos terrenos de Chão da Fonte. ↩︎