Morangueiro por Aniceto Carvalho

Segue-se um excerto de um texto deixado por Aniceto Carvalho:[1]

O morangueiro é um vinho de fraca qualidade, de baixa graduação por isso difícil de conservar, o que obriga ao seu consumo no mesmo ano da produção. Fácil consumo pelo pouco teor alcoólico, alta produção e fraca qualidade, eis o bastante para que o morangueiro nunca tenha tido qualquer interesse comercial no mundo.

Ressalve-se no entanto: A cepa do morangueiro é resistente à filoxera. E foi como protecção contra a filoxera nas vinhas tradicionais europeias que a vinha americana entrou em Portugal no Século XIX.

Com uma produção muito superior à dos vinhos europeus, a perigar a cultura dos vinhos portugueses, a comercialização do vinho morangueiro (americano), acabou por ser proíbida, ainda que largamente tolerada.

Certa noite os amigos do alheio decidiram assaltar a casa do meu avô. Aliás, foram duas.

Numa delas de nada valeram as rezas da minha avó nem as mezinhas de uma bruxa local para reaver a capoeira de galinhas; na outra os larápios passaram pela porta do quarto, a minha avó estava acordada, ou acordou, chamou-me, disse-me o que se passava e, como uma mulher sensata na circunstância, aconselhou-me a não fazer barulho e a não chamar o meu avô.

Um pequeno corredor, a cozinha, se era ou não esse o destino foi onde os ladrões pararam.

De manhã, feito o inventário, faltava uma panela de esmalte, com quase cinco litros de sopa que a minha avó tinha feita na véspera.

  • Foi o cão do António Henriques – disse o meu avô na boa.

E adiantou:

  • Como o Mondego é um cão grande, encostou as patas à porta, a tramela cedeu, ele entrou, foi direito à cozinha.
  • E levou a panela enfiada na cabeça – respondeu a minha madrinha um tanto divertida.

O meu avô olhou de lado, não se desmanchou.

  • Era gente que tinha fome – concluiu, sem ligar ao caso a menor importância. Pendurou o casaco no ombro, saiu porta fora.

Uma coisa é um pobre de Cristo roubar uma panela de sopa, a outra, muito diferente, é quando um Estado que nunca ninguém conhece de lado nenhum vem meter a mão no que é nosso.

Com a excepção de meia dúzia de corrimões que em tempos teriam produzido vinho com alguma qualidade e fama, pelo que julgo saber, a região entre o Mondego, o Ceira e o Alba estava muito longe de ser uma zona vinícola… e em Couchel, de modo geral, para além da Quinta, dava para os gastos do ano e pouco mais.

[…] eu nem sabia o que “morangueiro” queria dizer… no entanto, quando por ali apareceu a autoridade com três operacionais de enxada às costas, precisamente na propriedade das Fontainhas, na encosta que da casa do Joaquim Caseiro chegava ao Cabeço, uma luzinha brilhou no meu espírito.

Nada do outro mundo. O morangueiro lá da terra não dava nada, embora proíbida a cepa americana era tolerada, a intervenção em Couchel acabou com umas videiras cortadas rente, algumas delas bravas, que nem arrancadas foram.

Não era preciso mais espalhafato. De qualquer maneira quando Estado mete a mão no que é nosso, ninguém acha graça nenhuma. No entanto, apenas algum mau estar… Nada mais.

Lembro-me muito bem disso.

Aniceto Ferreira de Carvalho nasceu em Março de 1935, na localidade de Vale de Vaz. Cresceu em Couchel e, terminada a 4ª classe, foi trabalhar para Rio de Mouro (Sintra). Aos 17 anos ingressou na Força Aérea Portuguesa como mecânico de avião e mais tarde como especialista mecânico de material aéreo. Veterano da Guerra do Ultramar, faleceu no mês de Março de 2020.