Pitrolinos por Aniceto Carvalho

Seguem-se alguns excertos de textos deixados por Aniceto Carvalho:[1]

Eu sou do tempo em que o lagar e o moinho da minha terra eram movidos à nora… mas também sou do tempo de passarem a ser movidos a motor.

No caso uma levada era desviada da Ribeira de Vila Chã, passava pelo lagar, a seguir pelo moinho, fazia o que tinha a fazer, seguia para o rio Ceira. A fabricação do azeite, como se sabe, é nesta altura do ano, próximo do Inverno… o que, na minha terra, na altura, era apreciável.

De e para a escola eu caminhava todos os dias um destes regatos a jusante do lagar, do Rossio de Vale de Vaz à Fonte das Tortas. Os resíduos empapavam as margens, a espuma negra e os detritos presos nos juncos era bem pouco agradável de ver. Vinham umas chuvas, no dia seguinte já se bebia água no ribeiro. Ninguém morria. A flora era abundante, não havia incêndios, a fauna era mais que muita, até nas portas das casas havia ninhos.

Guardar a colheita de azeite noutro tipo de vasilha que não em potes de barro vermelho vidrado, era crime na minha região. Disse-mo o meu pai. Acabava de lhe sugerir que os potes cheios de azeite que ele guardava na dispensa podiam partir-se, e que vasilhas metálicas eram muito mais seguras.

  • Nem fazes ideia do que estás a dizer.

Não só pela qualidade da azeitona, mas também, e de certo, pelo tratamento, depois pelos especiais cuidados no armazenamento, o azeite da minha região era famoso. “Famoso” é ainda hoje o termo. Sem qualquer exagero. […]

(Na região do Porto o termo “azeiteiro” é calão depreciativo, é um corno com gordura pendurado por baixo do carro de bois para olear o eixo de madeira… por isso os azeiteiros da minha terra adoptaram o nome de pitrolino…)

O que fazer, quando além da superior qualidade, a abundância de um produto da região excede largamente o consumo da população? O que faz o mundo inteiro há séculos quando produz mais do que precisa: Vende para comprar o que não tem. E os poiarenses foram vender o seu azeite. Primeiro só o superior e aromático produto lá da terra… Evoluíram, criaram um novo ramo de negócio, alargaram e diversificaram a oferta, passaram a vender tudo o que era azeite fosse qual fosse a origem.

Nem sempre a viver nas melhores condições nas terras onde deixava o suor, na sua, no entanto, o pitrolino ia de vento em popa: Comprava mais uma leira, fazia ou remodelava uma antiga casa, em curta visita ou durante uma estadia mais longa, transpirava de sucesso. E alguma jactância — diga-se.

O pitrolino trabalhava do amanhecer ao sol posto, e noite dentro, sete dias por semana. Iniciava a venda a cinco quilómetros, quando o dia despontava, atendia a última freguesa à luz da lanterna a uma hora de chegar a casa. Como sempre, no entanto, o trabalho ninguém via.

O pitrolino tinha empregados. Eram os filhos dos parentes e amigos, os miúdos acabados de sair da escola que tinham de saber o que custava a vida. Era também o que os próprios miúdos queriam. Sabiam muito bem, praticamente desde que abriam os olhos, que ali na terra não era futuro para eles; e queriam porque viam chegar os mais velhos cheios de prosápia; e queriam, porque, muito naturalmente, também não eram esses empertigados mais velhos que lhes contavam o que passavam nas vendas de azeite.

Mas era preciso ter a 4ª. Classe. “Era”… E por isso a 4ª. Classe era “obrigatória” desde há muitos anos na minha terra; “era” porque, para além da robustez fora do comum, a desenvoltura mental necessária para trabalhar numa venda de azeite não era para pategos. Nem vale a pena entrar em pormenores… Mas só para reinar, ponham hoje um jovem com o 12º. Ano a fazer e a fixar cinco somas de cinco parcelas apenas de cabeça e ao mesmo tempo.

Estes miúdos de 12 anos eram depois os mais velhos meia dúzia de anos depois… que iam para a terra todos emproados, bem vestidos, de bicicleta e relógio de pulso, com dinheiro a tilintar nos bolsos, que punham os olhos dos outros mais novos a dançar nas órbitas.

E a engrenagem continuava de geração a geração. Como sempre, o inevitável: Uns desistiam… não gostavam, era muito puxado; outros, por opção ou inércia, com os horizontes na actividade, acabavam por comprar ou fazer uma nova venda noutra terra, e às vezes, o que não era assim tão invulgar, alguns até acabavam por casar com as filhas dos patrões.

De qualquer modo muita foi a riqueza a entrar na minha zona durante mais de meio século à conta desta gente que, com os seus defeitos e virtudes, mas trabalhadora, muito beneficiou o concelho de Vila Nova de Poiares.

Deixe-se claramente dito: Pessoalmente não guardo as melhores recordações de empregado de pitrolino. Da primeira experiência. Na segunda, a mais comum, foi muito diferente. Dependia dos patrões; mas também, e muito, dos empregados que, conforme os pais lá na terra, ou eles próprios, se sujeitavam ou não. Em lugar de uma adolescência de ócio sem rumo, aos vinte anos o empregado de uma vende azeite tinha uma vida de trabalho em cima do corpo, mas também, se bem aproveitada, de constante aprendizagem ao dispor, era um homem feito, sabia o que era a vida e o que queria dela.

Ser empregado de uma venda de azeite era muito melhor do que parecia. Não ganhava assim tão mal para época, (o mesmo que um cabo especialista da aviação militar), com o patrão a suprir-lhe praticamente todas as despesas, inclusive as domingueiras, quando o empregado de uma venda de azeite voltava à terra levava intactos todos os tostões, normalmente um fato, uma bicicleta ou um relógio de pulso como prémio pelo ano de trabalho.

Aniceto Ferreira de Carvalho nasceu em Março de 1935, na localidade de Vale de Vaz. Cresceu em Couchel e, terminada a 4ª classe, foi trabalhar para Rio de Mouro (Sintra). Aos 17 anos ingressou na Força Aérea Portuguesa como mecânico de avião e mais tarde como especialista mecânico de material aéreo. Veterano da Guerra do Ultramar, faleceu no mês de Março de 2020.